Fundamentos Bromatológicos de Infant Formulas:
e manipulações semiológicas sofridas
De que é feita uma Infant Formula, quais as fontes proteicas e de carboidratos entram na formulação para mimetizar o "leite materno"? Quais os fundamentos bromatológicos disso? E como isso é apresentado ou distorcido com emprego de recursos da semiótica e da linguística? Leia, gratuitamente, o Capítulo 22 do livro ALEITAMENTO: Bases Científicas.
cap.
22
ingredientes, mimetizações, signos e
mercado
Luiz Eduardo R. de Carvalho e Marcia dos
S. Dias
1.
Introdução
Lactose é um açúcar que não se encontra em
nenhum outro lugar que não seja nos leites. Lactose não é o único carboidrato
do leite materno. E caseína não é a proteína predominante no leite humano. Esses
são três fundamentos básicos para pensadores e para usuários de “fórmulas
infantis”. E são os três fundamentos que guiarão estas reflexões sobre
mimetização, signos, rotulagem e regulação em infant formulas ou “fórmulas infantis”.
Bem antes desta contemporaneidade de
nanotecnologias, clonagens e transgenias biotecnológicas, algumas poucas
décadas atrás, a tecnologia de alimentos imaginou “maternizar” o leite de vaca,
retirando dali a lactose e a fração protéica do soro do leite - a
lactoalbumina, em vez da caseína - e juntando-as
a óleos vegetais, assim formatar os pilares das formulações para bebês, uma
inovação em tudo similar a tantas outras formulações já adotadas e, em
particular, na nutrição enteral e parenteral.
As “fórmulas infantis” emergiam, assim, como um
alimento que mimetizaria uma secreção glandular, e o leite materno passava a
ser, para muitos, algo equivocadamente assumido como um alimento dentre outros.
E se ali eram aceitas denominações como leite de côco, leite de rosas, leite de
onça e, mais tarde, leite de soja, parecia normal que então se encaixassem
também terminologias como “leite infantil” e “leite maternizado”. Mais tarde,
esta denominação seria demonizada e planetariamente retirada de circulação.
Pós para refresco mimetizam sucos de frutas.
Margarina mimetiza manteiga. E, portanto, o senso comum poderia perfeitamente também
conduzir à hipótese de que seria possível e legítimo mimetizar o “alimento”
leite materno. E aqui é oportuno abrir parênteses: a margarina, ao mimetizar
manteiga, está subordinada à uma legislação específica, que exige a adição das
vitaminas A e D, originalmente presentes na imitada manteiga. Paradoxalmente, a
legislação não adota o mesmo cuidado com os refrigerantes (sem betacaroteno ou anticianinas),
as bebidas de soja (sem frutas e com escassa soja), os pós para refresco (sem
vitamina C ou flavonóides), as “carnes vegetais” (sem ferro) etc.
Ao ingerir refrescos artificiais, em vez de
sucos naturais, o consumidor é subtraído do aporte de vitaminas, minerais e
outras substâncias benéficas à saúde, limitando-se a beber açúcar dissolvido em
água colorida. Isso não ocorre ao se trocar a manteiga pela margarina, porque
esta é compulsória e discretamente vitaminada. No entanto, a margarina não pode
destacar, em sua rotulagem, os nutrientes adicionados, pois também, e como as
fórmulas infantis, nada mais é do que uma imitação de um produto que contém
naturalmente essas substâncias.
Se a margarina tivesse permissão para
propagandear essas adições, poderia prevalecer a percepção de ser mais rica em
vitaminas do que a manteiga. E temos aqui, então, um inquietante paradoxo: as “fórmulas infantis”,
quando agregam sais minerais, oligossacarídeos e quaisquer outras substâncias
naturalmente presentes no leite humano, fazem enorme publicidade desse “plus”,
em seus rótulos e também em seus folhetos “científicos” direcionados à classe
médica. Ora, o fato da marca A conter um
“plus” em relação à marca B, não deveria poder ser confundido, de roldão, com
um “plus” da marca A em relação ao leite materno.
“Fórmulas infantis”, porém, estão propagandeando
e rotulando todo tipo de “health claims”[1]:
DHA, ARA, TCM[2], enriquecido com ferro e
zinco, nucleotídeos, LC-PUFAs[3],
bifidogenices, probióticos, prebióticos, simbióticos, cálcio e fósforo de alta
disponibilidade etc. Em suma, nota-se um projeto em curso, não somente para
“customização” das infant formulas, mas
também para instauração de uma imagem de “alimento funcional” diferenciado e superior
ao leite materno.
Uma infant
formula, porque conceitualmente se apresenta como uma mimetização do leite humano,
deveria, e parece óbvio, receber ingredientes idênticos ou muitíssimo similares - não
apenas em termos de identidade e qualidade, mas também de quantidade - àqueles
todos que estão naturalmente presentes naquilo que se propõe a mimetizar. Ou
seja, a fonte de carboidrato deveria ser predominantemente lactose, e não amido,
sacarose, maltodextrina ou até mesmo gomas e fibras. Igualmente, a proteína não
deveria ser caseína, mas sim lactoalbumina.
No mercado, porém, o que se observa é uma
realidade muito distante deste raciocínio. Como agravante, a rotulagem não salienta
essas variações; ao contrário, e inclusive pela manipulação de terminologias,
parece pretender a construção de uma identidade propositalmente difusa e
misteriosa.
Neste capítulo, o foco estará em um sub-recorte,
que é a utilização de variadas fontes e tipos de proteínas (não apenas soro) e
carboidratos (não mais estritamente lactose), bem como a utilização de
nomenclaturas desviantes. Objetiva-se, enfim, identificar, descrever e analisar,
exploratoriamente, a partir da rotulagem, a identidade e a composição de infant formulas ofertadas no Brasil, com
foco nas fontes de carboidratos e proteínas.
2.
A imagética das palavras
e dos números nos rótulos
Uma primeira análise dos rótulos das “fómulas
infantis” impressiona o observador, pois tais rótulos estão saturadamente
povoados de palavras, frases, anúncios, tabelas, quadros, imagens, símbolos e
logomarca ocupando por inteiro o espaço disponível. E, nesse contexto, as INFORMAÇÕES IMPORTANTES, inclusive quando assim anunciadas, em
maiúsculas e negrito, encontram-se impressas em fontes de tamanho relativamente
diminuto, em espaços, locais, cores e formatos nada privilegiados ou
destacados.
Já não é mais permitido
inserir figuras de bebês nos rótulos das “fórmulas infantis”. Persistem, porém,
outras imagens que inclusive ampliam a velha e proibida mensagem: onde era um
bebê, agora são bebês-ursinhos, de lábios avantajados e brancos, simulando uma
chupeta. E a cada dia está maior aquela amável figura da “mamãe-passarinha”
colocando comidinha na boquinha do “filhinho-passarinho”.
Essas figurações são por
demais visíveis e óbvias. E o problema é bem mais vasto e complexo. Merecem
atenção, por exemplo, as tabelas de nutrientes, que nas infant formulas se
diferenciam das informações nutricionais dos rótulos de todos os demais
alimentos, inclusive do próprio leite de vaca.
Aquelas tabelas (Box 1) não
foram imaginadas e criadas como instrumento de informação nutricional, mas como
produto dos departamentos de “soluções visuais”, que assessoram clientes nos
esforços de “traduzir” ao público os conceitos, valores e objetivos de uma
mercadoria, de uma instituição, de um serviço ou de um evento.
Nesta “era imagética”,
na sociedade de consumo, onde o ambiente e a cultura são regidos por imagens,
um rótulo não é lido nas palavras que estão ali escritas. Antes do rótulo, será
lida a própria embalagem. E, antes da embalagem, será lida a localização do
produto no supermercado, a seção onde está ofertado, em que altura das
prateleiras, as outras mercadorias vizinhas. E é lido se o produto tem status e
perfil para freqüentar prateleiras de farmácias e drogarias. E´ lido o próprio preço e, quando o preço é
caro, então é bem provável que seja muito bom produto. A mercadoria não pede,
em seus rótulos, uma leitura de palavras e uma alternativa alimentar, porque
antes oferece uma leitura do mundo e uma opção de reposicionamento cultural e
social dos indivíduos “consumidores” na sociedade.
Ler - e
ler um rótulo - é mais que olhar letras, compor sílabas e
entender palavras. Ler é também, e antes, entender um cenário, traduzir uma
situação, decifrar e interpretar mensagens gráficas e decodificar signos. Um
consumidor-cidadão e, em especial, um profissional de saúde, quando se defrontam
com um rótulo de alimentos, de cosméticos, de medicamentos ou mesmo de produtos
domissanitários, precisam aceitar o desafio de selecionar e interpretar as
imagens desses rótulos, subentendendo que, muitas das vezes, também as palavras
e os números não são palavras e números, mas imagens que expressam sentidos que
não estão nas palavras e números ali desenhados, e que não podem ser ignorados como
caráter ideológico subjacente, nem como ferramentas de uma idéia essencial
elipsada, mas ali sendo emitida. E este
é um objetivo secundário deste Capítulo: realizar um exercício de reflexão e
treinamento para seleção, leitura e interpretação das informações e imagens que
nos são colocadas nos rótulos das “fórmulas infantis”.
Observemos as tabelas de composição química das infant formulas apresentadas no Box 1. Essas
tabelas, ao contrário das orientações e dos alertas compulsórios estabelecidos pela
legislação, ocupam vastos e nobres espaços nos rótulos. E, paradoxalmente, no mundo
do cognitivo, é bem provável que os consumidores, ao olharem os rótulos de infant formula, terminem lendo como
imagens, mesmo aquilo que, no mundo do jurídico, no universo do regulatório,
seriam apenas textos descritivos, com palavras e números. Ou seja, uma tabela
de nutrientes, sendo percebida ou não, sendo sequer olhada ou não, sendo bioquimicamente
compreendida ou não, ela, em vez de ser lida, é meramente vista, e a imagem
então emite, ao consumidor, uma mensagem própria e diferente do que está
escrito.
Independentemente dos teores sempre adequados ou
não, independentemente da composição química ser saudável para os bebês ou não,
os consumidores estarão captando uma mensagem desenhada e não escrita. E tal
mensagem, uma imagem que lemos como Y, embora esteja escrito X, é algo como: “este produto contém muitos nutrientes,
muitas vitaminas e muitos sais minerais”.
Essas palavras não estão escritas ali. Mas é
isso que está ali desenhado com nomenclaturas e números bromatológicos e,
então, é isso que, no final, embora meramente olhado, terminará sendo lido e
captado pelo cérebro.
Se um rótulo de infant formula fosse uma mediação entre profissionais de saúde e
consumidores, certamente as informações não estariam com aquela localização e aquele
“lay out”, nem com fontes naquelas
dimensões e naquelas cores. Essas deficiências ou divergências gráficas
seguramente não expressam deficiências técnicas dos autores que redigem,
ilustram e diagramam tais rótulos. Muito pelo contrário, o que sanitariamente
entendemos como erros são, em vez disso, os “grandes acertos” das mais
privilegiadas mentes publicitárias e mercadológicas.
Mostra-se, assim, imperativo desenvolvermos
esforços para traduzir, explicitar e compreender essas ocorrências desviantes,
pelo olhar crítico da saúde pública e no cenário delicado da puericultura.
Primeiro, para melhor orientar ou alertar consumidores e profissionais.
Segundo, mas não menos importante, para persuadir os responsáveis pela
regulação e vigilância sanitária que as normas vigentes de rotulagem são
cúmplices ou mesmo patrocinadoras dessas danosas distorções.
Tabela de
Nutrientes: Texto ou Imagem ?
Aquilo que aqui se aponta como equívocos e
distorções, certamente, são criações de grandes especialistas, formados ou
formatados em academias superiores de propaganda e marketing, que depois se intrapremiam e se congraçam,
comemorativamente, em festivais, por essas “brilhantes” criações, que
classificam como “cases” de sucesso, fazendo, do rótulo e do design, ferramentas orientadas para
arquitetar fantasias e percepções imaginárias, úteis para gerar demandas artificiais
e alavancar consumo e inflar vendas; mas violando valores sociais e a ética,
sem considerar que o consumidor-alvo são frágeis, vulneráveis e indefesos bebês
de poucas semanas de vida. Ressaltar falácias, elaborar falsas percepções e
ocultar alertas constituem um ricamente remunerado desafio para essas
inteligências.
3.
Ingredientes Básicos nas
Infant Formula
A listagem de ingredientes utilizados na
formulação desses produtos também parece adotar artifícios que, embaralhando e
sobrepondo termos técnicos e seus sinônimos, dificultam a compreensão, induzem
a erros e, mais que tudo, contribuem para a consolidação da percepção de uma
“caixa-preta”. Isso se soma a outras violações do espírito das normas de
proteção ao aleitamento materno.
O Codex
Alimentarius[4],
por exemplo, estabelece que essas categorias de produtos “serão rotuladas
evitando-se qualquer risco de confusão entre “infant formulas, fórmulas de seguimento e fórmulas para uso
medicamentosos especiais”. Paradoxalmente, o Codex não vai além desse ponto e, assim, ele próprio, ao não
detalhar com desdobramentos especificativos, se omite e abdica de intervir na
prevenção e controle desses reconhecidos fatores de confusão e seus riscos.
Como está demonstrado no Capítulo 22, as normas
do Codex Alimentarius e da ANVISA vêm
sendo modificadas sucessiva e frequentemente, como resultado de um jogo de
forças oscilantes, onde o segmento industrial tem vetores sempre mais poderosos.
Para modificar o equilíbrio de forças entre os atores desse jogo, é necessário,
por parte dos profissionais de saúde, mas também dos consumidores, um melhor
conhecimento sobre a natureza e a nomenclatura dos ingredientes. Uma rotulagem
objetiva e sincera poderia facilmente dar conta dessa tarefa informativa. Entretanto,
como essa rotulagem ainda não existe, e depende da correlação daquelas forças, mostra-se
imperativo decodificar e reconstruir a rotulagem a partir do olhar e dos
saberes dos usuários.
E´ diante desse quadro, que o objetivo deste
capítulo volta-se para descrever, questionar e, resgatando alguns conceitos
básicos de bromatologia, orientar a leitura e a interpretação dos rótulos de infant formulas, atendo-se ao recorte da
listagem de ingredientes, sub-recortando para focar em fontes de carboidratos e
proteínas. O ato de identificar, classificar e explicar, química e
bioquimicamente, os ingredientes presentes nas infant formulas, certamente
poderá se afirmar como uma alternativa pedagógica para a desconstrução desses
rótulos, tornando-os mais inteligíveis e, então, melhor controláveis.
Se o leite materno fosse, hipoteticamente,
considerado um alimento qualquer - e
para adultos sãos - deveríamos então iniciar observando que ele é
composto de carboidratos (quase exclusivamente lactose), proteínas (predominantemente
lactoalbumina), lipídeos, vitaminas e sais minerais (de alto valor biológico).
Ou seja, não estaríamos focando nas demais substâncias presentes e
indispensáveis para um bebê, que caracterizam o leite materno não como um
alimento, mas como um “produto muito particular”.
CARBOHIDRATOS
E´ reconhecido que o
principal açúcar do leite materno é a lactose, porém mais de outros trinta
açúcares já foram identificados no leite humano, como a galactose, a frutose e os
oligossacarídeos, com ação bifidogênica comprovadamente muito maior do que os
do leite de vaca. Nas infant
formulas, já quando se começa observando o que há de mais básico, que são
os carboidratos, o Codex abre a
possibilidade de se substituir o leite materno por outra coisa, totalmente
diferente do leite materno.
Nos trechos a seguir, grifa-se algumas palavras das
normas internacionais, para evidenciar como, sinalizando proibições, o Codex, ao contrário, institui permissividades,
quando estabelece que “Lactose e polímeros
da glicose deveriam ser os carboidratos preferenciais nas fórmulas baseadas em leite de vaca e
proteína hidrolisada”, e que “ (...) apenas amidos pré-cozidos ou
gelatinizados”, glúten-free por
natureza, poderiam ser adicionados, mas “apenas
até 30% do carboidrato total e até 2 g/100 ml”.
Além disso, “Sacarose, exceto
quando necessário, e frutose deveriam ser evitados como ingredientes, (...)
inclusive devido à potencialidade de sintomas que podem causar óbito em bebês
com intolerância hereditária não reconhecida à frutose”.
PROTEÍNAS
As principais proteínas presentes no leite de
vaca podem ser divididas em três grupos:
1) caseína, que é a parte coagulável das proteínas;
2) proteínas solúveis não coaguláveis, representadas pela alfa-lactoglobulina e
alfa-lactoalbumina; e 3) proteoses, peptonas, albumina sérica e
imunoglobulinas, as quais ocorrem em baixas concentrações. Mas nem tudo que é
quimicamente proteína está, no leite de vaca ou no leite humano, para ser
consumido como proteína, para fins nutricionais. Muitas vezes uma substância tem caráter
protéico, estrutura protéica, mas tem finalidades biológicas não-nutricionais.
E´ o caso das enzimas, que são proteínas, mas até porque insignificantes em
quantidades, não são exatamente “comida”. Vale lembrar, outrossim, que diversos
estudos já demonstraram existir, pelo menos, mais de 25 frações protéicas
alergênicas no leite de vaca. E, no leite materno, o perfil das substâncias protéicas
é bastante diferente, começando pela presença de taurina, ausente no leite de gado.
O que mais diferencia o leite de vaca do leite humano, e por isso mesmo mais transtornos pode causar aos bebês, é exatamente a composição de proteínas e o desequilíbrio entre os minerais. O leite de vaca ainda possui três vezes mais proteína que o leite humano, sobrecarregando o rim, quando consumido em alta quantidade e, ao contrário do que se imagina, aumentando a excreção urinária de cálcio.
As proteínas do leite humano são estruturais e qualitativamente
diferentes das do leite de vaca. No leite humano, 80% do conteúdo protéico é de
lactoalbumina. No leite de vaca, esta mesma proporção é de caseína. A relação
proteína do soro/caseína do leite humano é de 80/20, a do leite bovino é 20/80.
A baixa concentração de caseína
no leite humano resulta em uma formação de coalho gástrico mais leve, com
flóculos de mais fácil digestão e com tempo reduzido de esvaziamento gástrico.
Além disso, o leite bovino contém a beta-lactoglobulina, uma proteína que não
existe no leite materno e é comprovadamente a mais alergênica do leite de vaca
para o ser humano, principalmente porque não temos as enzimas indispensáveis para
digeri-la.
CÁLCIO
Outro fator de desequilíbrio no leite bovino é a quantidade de cálcio,
que é 3 vezes maior que no leite materno, porém com desequilíbrio entre os
minerais necessários para uma adequada utilização do cálcio, prejudicando sua
biodisponibilidade. Isso não acontece no leite humano, cuja quantidade e
proporção de cálcio e dos demais minerais como magnésio, boro e manganês sinergizam a absorção, gerando uma utilização
adequada e evitando portanto microcalcificações.
4.
Listagem de Ingredientes
nas Infant Formula
Se uma infant formula deve
assemelhar-se, bromatologicamente, ao leite materno, então deveria conter, já
de início, os mesmos carboidratos e as mesmas proteínas. Entretanto, uma primeira
observação panorâmica e superficial dos rótulos das infant formula (Box 2) revelará
que no mercado as “fórmulas” não não assim. A origem e a tipologia dos
ingredientes das diversas infant formulas
variam largamente entre as diferentes marcas e mesmo dentro de uma mesma marca,
ora contendo leite, ora contendo maltodextrina ou mesmo sais inorgânicos de cálcio
(portanto, de origem não-láctea).
Box 2
Listagem
de Ingredientes de algumas Infant Formulas
A Tabela I, a seguir, apresenta algumas das
principais Infant Formulas e suas
respectivas fontes de carboidratos (células em fundo cinza claro) e proteínas
(fundo cinza mais escuro). Nota-se uma
ausência de padronização nas denominações, o que dificulta a compreensão dos
consumidores e cria tendência de indução a erros na opção de compra e consumo.
O
Codex Alimentarius estabelece que,
além dos requisitos de composição básica, é também permitida - não obrigatória, mas meramente permitida - a
adição de ingredientes facultativos, substâncias que normalmente (grifo
nosso) estão presentes no leite humano, para garantir que a infant formula seja adequada como única
fonte de nutrição do lactente, ou para proporcionar outros benefícios análogos
aos resultados de populações de lactentes com aleitamento materno exclusivo.
Tais substâncias são: taurina,
nucleotídeos e ácido docosahexaenoico
(22:6 n-3). E ainda culturas produtoras de L(+) ácido lático. A Tabela
II apresenta os ingredientes facultativos presentes em algumas Infant Formulas encontradas no mercado
brasileiro em 2009.
5. Carboidratos em Infant Formulas
Monossacarídeos e dissacarídeos se apresentam,
na natureza, em baixas quantidades. Em vez de açúcares livres, o que mais temos
são polissacarídeos. O amido, assim como
a celulose, é um polissacarídeo formado por cadeias que podem chegam a milhares de
unidades de glicose (C6H12O6).
Quando a cadeia é linear, o amido é denominado amilose; quando é ramificada,
amilopectina. E quando a cadeia tem entre dois e dez monossacarídeos é
denominada oligossacarídeo.
O amido de
milho, como o de trigo e de outros grãos, raízes e tubérculos, é sempre uma
longa cadeia de moléculas de glicose. Forma assim uma macromolécula, com cerca
de 1,4 mil unidades de α-glicose,
conectados por ligações glicosídicas α-1,4. As ramificações
ocorrem mediante ligações α-1,6. Quando oriundo de raízes e tubérculos, o amido recebe o nome de
fécula.
Amilose e celulose são, igualmente, longas
cadeias lineares de glicose; o que os diferencia são as ligações entre as unidades
de glicose nessas cadeias. No caso da celulose, são as ligações são do tipo b-1,4.
E, para romper estas ligações, o trato digestivo humano não dispõe das enzimas
hidrolíticas específicas. Então, e ao contrário da amilose, a celulose não pode
ser absorvida.
Os leites são a única fonte conhecida desse
dissacarídeo, a lactose, que é composta de dois monossacarídeos, a glicose e a
galactose. O leite de vaca contém cerca de
4,9% do açúcar “lactose”, o que não chega a adoçar o leite, já que a
lactose é um açúcar que não tem o poder adoçante da sacarose. Maltose
(glicose-glicose) e sacarose (glicose-frutose) são outros dissacarídeos. A
glicose é também conhecida como dextrose e até pelo anglicismo glucose. A
frutose é também denominada de levulose, o que parece química e semanticamente
melhor apropriado.
Dissacarídeos, assim como o polissacarídeo
amido, não são capazes de atravessar a parede
intestinal e, portanto, para serem aproveitados como fonte de energia é
indispensável que, primeiro, sejam hidrolisados a monossacarídeos. Os oligo e
polissacarídeos não hidrolisados seguem do intestino delgado até o intestino
grosso, interferindo no funcionamento dos intestinos.
O leite normalmente apresenta pouca variabilidade no teor de lactose,
isto ocorre em função desse dissacarídeo ser um dos principais responsáveis
pela osmolaridade, e da necessidade da pressão osmótica do leite estar de
acordo com a pressão sanguínea (SWAISGOOD, 1996).
O Box 3
apresenta uma relação das fontes de carboidratos adotadas nas infant formulas existentes no mercado
brasileiro: sacarose, açúcar, maltodextrina,
amido de milho pré-gelatinizado, xarope de milho, sólidos do xarope de milho,
xarope de glicose, açúcar, lactose (de leite de vaca, inclusive quando o
ingrediente declarado é o leite de vaca desnatado). Fica explícito não apenas a
larga variabilidade das fontes e tipologias de carboidratos usados para
“mimetizar”, em geral equivocadamente, o leite materno, mas explícito também
que não há nenhuma padronização nas terminologias. Uma marca rotula sacarose e
a outra rotula açúcar; outras rotulam meramente amido, enquanto outras citam a fonte
e modificações eventuais nos amidos. Essas variações terminológicas, seja pela
adoção de sinonímias, seja por denominações descritivas das características das
substâncias, não parece constituir um método razoável de bem informar os
consumidores, gerando dúvidas desnecessárias e confusão na inteligibilidade dos
ingredientes.
Box 3
Ingredientes
que aportam carboidratos nas Infant
Fórmulas
(segundo a
rotulagem)
Lactose
|
Sacarose
|
Açúcar
|
Xarope de milho
|
Sólidos de xarope de milho
|
Polímeros de glicose
|
Maltodextrina
|
Amido
|
Amido de milho
|
Amido modificado
|
Amido de arroz pré-gelatinizado
|
Amido de milho pré-gelatinizado
|
]
O problema da nomenclatura e das definições é,
porém, muito mais profundo. Vale registrar que a legislação vigente - produzida pela CNNPA (Comissão Nacional de Normas
e Padrões para Alimentos), em sua Resolução 12/1978, aprovando para todo o
território brasileiro as normas técnicas então criadas e vigentes no Estado de São Paulo
- definiu que amido é :
(...) o
produto amiláceo extraído das partes aéreas comestíveis dos vegetais
(sementes), etc.). Fécula é o produto amiláceo extraído das partes subterrâneas
comestíveis dos vegetais (tubérculos, raízes e rizomas). E isso então
inclui: amido de arroz; amido de milho; araruta
(extraída de Maranta); fécula de batata; polvilho ou fécula de mandioca; sagu
(extraído de palmeiras); tapioca (obtido da farinha de trigo, privado de quase
todo o seu amido); e Farinha integral (obtido sob a forma granulada a partir de
fécula de mandioca submetida a processo tecnológico adequado).
Não é preciso ter sido um excelente aluno de química, ou ser um expert em nutrição ou gastronomia, para
perceber que tapioca não é isso, nem farinha integral tampouco é aquilo que a
legislação diz que é. De toda forma, essa é a legislação; e é assim que legisla e opera a ANVISA. Não seria, portanto, precipitado pressupor
que, em questões muito mais complexas, como definição e caracterização de “infant formula”, as normas sejam ainda
mais contraditórias e equivocadas.
Na Wikipédia, curiosamente, não é muito diferente. Dextrose e
glicose, já sabemos, são apenas dois nomes diferentes para uma mesma substância.
Mas, como pode ser observado, a definição lá oferecida para maltodextrina (em 9
de dezembro de 2010), trata dextrose e glicose como se fossem duas substâncias
diferentes.
“Maltodextrina
(...) pode ser definida como um polímero de dextrose e glicose.”
Maltodextrina
é um carboidrato complexo, proveniente da industrialização, onde a hidrólise parcial
provoca uma conversão do amido do milho. Sua absorção pelo organismo é
gradativa e lenta, pois contém polímeros de dextrose (glicose). Também
interessante é que a maltodextrina não apenas aparece na composição de muitas
dessas “fórmulas infantis”, mas inclusive é comercializada, para bebês, fazendo
uso de uma marca de fantasia: Nidex. As informações constantes no rótulo não
esclarecem adequadamente o que é Nidex e, menos ainda, o que é maltodextrina,
apenas tratando de, ao fingir informar, promover o consumo do Nidex em
substituição à sacarose que, ressalte-se, estava como ingrediente na fórmula do
Nestogeno Plus, do mesmo fabricante.
Box 4
Rotulagem e “anúncios” da maltodextrina NIDEX (2009)
6.
Proteínas em Infant Formulas
Em proteínas, a confusão é menor, mas ainda
assim significativa e de risco. Uma cadeia
de aminoácidos denomina-se "peptídeo", podendo a cadeia possuir
dois aminoácidos (dipeptídeos),
três aminoácidos (tripeptídeos),
quatro aminoácidos (tetrapeptídeos)
ou muitos aminoácidos (polipeptídeos).
O termo proteína é dado quando, na composição do polipeptídeo, entram
centenas ou milhares de aminoácidos.
A principal proteína presente no leite fresco,
de vaca, é a caseína, que é uma mistura de várias fosfoproteínas muito
semelhantes, atingindo cerca de 80% das proteínas do leite. E´ a caseína que,
junto com a gordura, propiciam a cor branca ao leite. A caseína coagula por
ação da renina, uma enzima presente no suco gástrico, formando um coágulo por
aglomeração das micelas de caseína, conforme se observa na fabricação de
queijos. E coagula por ação de ácidos,
conforme se observa, por exemplo, na produção de iogurtes.
Alguns autores classificam as proteínas do leite
de vaca em dois tipos: a caseína e as proteínas do soro. Devido às características particulares do
complexo micelar de caseína, as proteínas do leite separaram-se facilmente
nessas duas frações “caseína e proteína do soro”. Quando a caseína coagula e
precipita - como ocorre durante a
fabricação do queijo - restam ainda duas outras proteínas solúveis no
soro, como a lactoalbumina e a lactoglobulina, que podem ser retiradas para
fazer ricota, ou para servir de ingredientes em derivados lácteos, incluindo
algumas das infant formulas.
Da farinha desengordurada de soja é
tecnologicamente possível extrair a parte proteica. E essa parte é a chamada
Proteína Isolada de Soja, uma farinha concentrada em proteínas. Esse isolado
protéico pode apresentar composição centesimal variada,
dependendo do processamento e das condições de cultivo, sendo usual produtos
com até 90% de proteínas.
O Box 5 apresenta uma
listagem dos ingredientes utilizados, nas “fórmulas infantis” industrializadas, como fontes de proteínas. Observa-se fenômeno
em tudo semelhante ao apontado, antes, no Box 3, para carboidratos. Ou seja, uma lista enorme e variada de ingredientes
e denominações, grande parte deles muitíssimo diferentes das proteínas
encontradas no leite materno. E o Box 6
apresenta a lista de ingredientes de dois produtos sequenciais, ilustrando como
a fonte proteica é trocada da“Fórmula Infantil” para a“Fórmula Infantil de Seguimento”, dentro da mesma marca.
O teor proteico das infant formulas é calculado multiplicando-se por 6,38 a quantidade
de nitrogênio detectado por análise
laboratorial. Esse coeficiente pode ser diferente, ou não, para as demais fontes
proteicas permitidas nesses produtos. Para proteínas vegetais o coeficiente
muda para 6,25; mas para hidrolisados da proteína do leite de vaca se mantém em
6,38. Para um mesmo valor energético
(kcal), a fórmula deve conter, no mínimo, uma igual quantidade disponível de
cada aminoácido essencial ou semi-essencial, em relação à
proteína de referência (no caso, as do leite materno).
Aminoácidos isolados podem ser adicionados nas infant formulas apenas para incrementar o valor nutricional; já
para incrementar a qualidade proteica, apenas em quantidades necessárias para
tal propósito, sendo que apenas formas L dos aminoácidos são permitidas pelas
normas de identidade e qualidade.
Box 5
Ingredientes
que aportam proteínas nas Infant Fórmulas
(segundo a
rotulagem)
Soro de leite
|
Concentrado proteico de soro
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Soro de leite desmineralizado
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Proteína hidrolisada do soro de
leite
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Leite desnatado
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Leite integral
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Leite de vaca desnatado
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Leite de vaca integral
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Proteína do leite de vaca
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Caseína
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Caseína hidrolisada
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Caseinato de potássio
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Soro de leite desmineralizado
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Proteínas do soro de leite
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Proteína isolada de soja
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Isolado protéico de soja
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Box 6
Variações da fonte protéica
entre Fórmula Infantil e Fórmula Infantil de Seguimento
7.
Observações Finais
Os carboidratos no leite materno não são apenas
o convencional dissacarídeo lactose; esta é o carboidrato em maior quantidade,
com cerca de 80%, mas os demais 20% de carboidratos não são um “resto” de
carboidratos. E´ que aqui entram em cena
os oligossacarídeos, carboidratos com entre três e dez monossacarídeos em sua
estrutura, numa combinação que inclui cinco componentes: glicose, galactose,
ácido siálico, fucose e N-acetilglucosamida.
Denominam-se “fator bifidogênico” aqueles que
contem N-acetilglucosamida na estrutura e estimulam o desenvolvimento de
bactérias do gênero Bifidobacterium,
que predominam nas fezes de lactentes em aleitamento materno exclusivo. Esses
oligossacarídeos somam pouco mais de 6 gramas diárias para um lactente
amamentado, que não são absorvidos no intestino delgado.
As “fórmulas infantis”, por motivos variados,
fazem uso de outros carboidratos, associando-os ou não à lactose. Pode ser
sacarose, para tornar o produto mais doce e aceitável pelo bebê; podem ser
gomas ou amidos, com fins de espessamento, visando enfrentar o fenômeno da
regurgitação; e dentre outras finalidades, pode também ser um oligossacarídeo
com propriedades bifidogênicas, para melhor mimetizar o leite materno e
justificar “health claims” na rotulagem.
Esses produtos não podem fazer publicidade
direta ao público consumidor. Mas, havemos de convir que, em boa parte, a
decisão de compra não depende das mães , pois as “fórmulas infantis”, sendo
prescritas por médicos, têm, nesses médicos, o poder do exercício opsônico da
compra. Então, é o pediatra, e não a mãe, quem decide se deve ser adquirido ou
não, decidindo também o tipo e a marca do que será comprado.
Nesse contexto, livretos e folhetos
“científicos”, distribuídos pelos fabricantes aos profissionais de saúde,
demandam atenção. Nota-se uma crescente agressividade retórica nesses “informes
médicos”: os catálogos já não se limitam a falar das vantagens do seu próprio
produto, mas começam a apresentar enfáticas críticas aos produtos concorrentes.
Um fabricante defende que usa maltodextrina, enquanto acusa o concorrente de
usar sacarose. Ou defende que usa amido como espessante, enquanto acusa o
concorrente de espessar com fibras dietéticas, que prejudicariam a absorção de
sais minerais pelo bebê. Ou defende que não usa oleína de palma, sugerindo que
outras marcas usam, sem contudo adiantar explicações - ao
menos não por escrito - acerca dos riscos ou
danos que essa oleína poderá representar para um bebê.
Estudo
realizado com o objetivo de comparar a eficácia de uma fórmula infantil
pré-espessada (Nan AR) com fórmula convencional, de espessamento caseiro, com
amido de milho - na redução de episódios
de regurgitações e vômitos de lactentes com refluxo gastroesofágico, estudando
100 crianças menores de 12 meses de idade, que não faziam uso de leite materno
exclusivo, onde 48 foram sorteadas para
receber fórmula convencional, e 52 para receber fórmula infantil pré-espessada
(Nan AR) - concluiu, após 3 meses de observações, que os
resultados clínicos não apresentaram diferença estatisticamente significativa
na melhora ou cura dos sintomas entre os dois grupos, tendo sido ambos os
tratamentos eficazes (Penna, 2003). E um outro estudo, voltado para avaliar os
efeitos do uso de fibras dietéticas nesse espessamento de fórmulas infantis,
concluiu que, dependendo do tipo de fibra utilizada, eram causados efeitos
negativos, prejudicando a disponibilidade de cálcio, ferro e zinco (Bosscher, 2003).
O Box 7 apresenta uma dessas formulações, que
anuncia efeito bifidogênico, ao mesmo tempo em que oculta a substituição da
fonte de carboidrato. Ora, se de verdade
são os tão anunciados prebióticos que interferem na constipação, caberia
perguntar por que então o fabricante cuidou de, ao mesmo tempo, modificar a
formulação, colocando maltodextrina na versão “confort” em lugar da lactose que
permanece na versão original.
Box 7
Rótulo e Propaganda de Fórmula Infantil com probiótico
(ou será a maltodextrina o agente ?)
Se alguma lição é possível extrair de todas essas
observações, a principal seria: ainda que as fórmulas infantis conseguissem encontrar
e fornecer proteínas e carboidratos iguais ao do leite materno - e isso, como
vimos, não é feito - ainda assim ficariam faltando aquelas outras substâncias
que, embora química e estruturalmente se classifiquem como proteínas e
carboidratos, não têm essa função de, respectivamente, aportar aminoácidos para
construção de tecidos ou de fornecer energia.
Outras são as funções metabólicas e fisiológicas
desses carboidratos e proteínas e, à medida que tais substâncias e suas funções
vêm sendo percebidas, identificadas e compreendidas, algumas das “fórmulas
infantis” procuram se ajustar, incluindo-as como ingredientes. Essa
circunstância pode ser observada por diversos ângulos, mas ficaremos, aqui,
restritos ao ângulo da rotulagem.
Não parece razoável fazer da adição de algumas
dessas substâncias motivos legítimos para destacar “health claims” nos rótulos
e nas propagandas. Pelo contrário, se tais adições - como é, por exemplo, o
caso dos probióticos e dos prebióticos -
forem realmente indispensáveis e eficazes, então elas deveriam ser requisitos compulsórios
a todas as “fórmulas infantis”, de todos os fabricantes, e seria proibido destacar
isso no rótulo, interditando as intenções de construir uma imagem de “alimento
funcional”, vagamente talvez insinuado como superior ao leite materno.
Nesse quadro, a conclusão é que as “fórmulas
infantis” tendem a evoluir na contracorrente: em vez de convergirem para serem
todas o mais similar possível ao leite materno e, em decorrência, serem cada
vez mais similares entre si, elas, inversamente, se vergam às forças da
concorrencialidade e procuram, por ações de ordem mercadológica, se diferenciar
mais e mais umas das outras. Diferenciam-se adicionando substâncias que
inspiram alegações nutricionais e de saúde, como DHA, ARA, nucleotídeos,
prebióticos, probióticos etc. Mas se diferenciam também porque o carboidrato
muitas vezes não é a lactose, nem a proteína é lactoalbumina.
Leite materno não é um alimento e não está no
mercado. Leite materno não é leite, que vem dentro de uma caixinha contendo
estabilizantes que, nos refrigerantes zero, são denominados “reguladores de
acidez”, enquanto hidróxido de sódio é proibido para regular acidez de leite
refrigerado. Leite materno não é algo
que encontramos na natureza e elegemos para entrar no rol dos “alimentos”.
Leite materno não é apenas mais um tipo de leite. Logo, não parece razoável que
seus pretensos “genéricos” sejam regulados e rotulados com os mesmos valores e
métodos que se regulam e rotulam refrescos, snacks
e jujubas. E que expandam diferenciações entre as marcas, quando deveriam estar
todos, ao inverso, convergindo para um mesmo ponto, que é a mimetização
bromatológica do leite materno, que implicaria utilizar lactose e
lactoalbumina, em vez de maltodextrina, sacarose, amidos e gomas espessantes.
As fórmulas infantis agora visam mimetizar não apenas ou exatamente o leite humano. Elas tentam mimetizar o "produto ideal", engenheirado para alavancar vendas e liderar a concorrencialidade, em consonância com o paradigma que evolui para hegemonizar o perfil do mercado nutricional: o alimento funcional, a customização, o fast food, a alta gastronomia. Nada diferente, portanto, do que transcorre com os sucos de frutas que não são sucos, nem são de frutas. Nada diferente em relação aos iogurtes, os queijinhos petit-suisse e os leites fermentados com lactobacilos vivos, que não são iogurte, nem queijo, e, na maior parte das vezes, nem são de leite e, menos ainda, de leite fresco, mas de soro ou leite em pó reconstituído com água.
Esse
parece ser, na atualidade, o novo ponto central da identidade e da rotulagem
das “fórmulas infantis”, o que nos remete aos parágrafos iniciais deste
Capítulo E leite materno não é uma bebida que contenha gomas espessantes, maltodextrina
ou adoçantes. Ou seja, essas formulações são alimentos voltados para substituir
uma coisa que não é um alimento. E são mercadorias voltadas para substituir uma
coisa que não é mercadoria. O leite materno não é uma mercadoria, não está no
comércio, e fica complicado substituí-lo por um artefato de uma natureza que
ele não é.
Não há dúvida que as “fórmulas infantis” conformam
um importante constructo da inteligência humana e uma preciosa contribuição da
bromatologia e da tecnologia alimentar para a nutrição e a saúde. Mas a
competitividade entre os fabricantes está ajudando a revelar um novo,
interessante, mas inquietante e ainda pouco percebido fenômeno, que introduz
novas necessidades em vigilância sanitária. Essa tendência, das “fórmulas infantis”, não
parece ter sido prévia e suficientemente considerada pelo Codex Alimentarius ou pela ANVISA, e a regulação vigente, embora
muito recente, já não dá conta das novas
situações e seus desdobramentos na rotulagem, na propaganda, no consumo e na
saúde pública.
8. Bibliografia
BOBBIO,
F. O.; BOBBIO, P. A. Introdução a Química de Alimentos. 3 Ed. São Paulo:
Varela, 2003. 238p.
BOSSCHER, D.; VAN CAILLIE-BERTRAND, M.; VAN CAUWENBERGH, R.; DEELSTRA, H. Availabilities of Calcium, Iron, and Zinc From Dairy Infant Formulas Is Affected by Soluble Dietary Fibers and Modified Starch Fractions. Nutrition, v.19, p. 641–645, 2003.
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Alimentos, v. 25, n. 4, p. 683-690, 2005.
PENNA, F.J; NORTON, R.C.; CARVALHO, A.S.T; POMPEU, B.C.T; PENNA, G.C; FERREIRA, M.F; DUQUE, C.G; COUTO, J.; MAIA, J.X.; FLORES, P.; SOARES, J.C.
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[1] N.E.: Indicações de saúde ou
médicas
[2] N.E.: DHA = ácido
docosa-hexaenoico; ARA = ácido araquidônico; TCM = triglicerídeos de cadeia média
[3] LC - PUFAs = ácidos graxos poliinsaturados de cadeia longa
[4] O Codex Alimentarius (Código
Alimentar em Português) é um programa de normas alimentares, criado em 1962
pela FAO e pela OMS (Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação e Organização Mundial de Saúde).
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