Apresentação

Gerar, disseminar e debater informações sobre BABY FOOD, sob enfoque de Saúde Pública, é o objetivo principal deste Blog produzido no Laboratório de Vida Urbana, Consumo & Saúde - LabConsS da FF/UFRJ, com participação de alunos da disciplina “Química Bromatológica” e com apoio e monitoramento técnico dos bolsistas e egressos do Grupo PET-Programa de Educação Tutorial da SESu/MEC.

Recomenda-se que as postagens sejam lidas junto com os comentários a elas anexados, pois algumas são produzidas por estudantes em circunstâncias de treinamento e capacitação para atuação em Assuntos Regulatórios, enquanto outras envolvem poderosas influências de marketing, com alegações raramente comprovadas pela Ciencia. Esses equívocos, imprecisões e desvios ficam evidenciados nos comentários em anexo.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Fundamentos Bromatológicos de Infant Formulas: 

e manipulações semiológicas sofridas



De que é feita uma Infant Formula, quais as fontes proteicas e de carboidratos entram na formulação para mimetizar o "leite materno"? Quais os fundamentos bromatológicos disso? E como isso é apresentado ou distorcido com emprego de recursos da semiótica e da linguística? Leia, gratuitamente, o Capítulo 22 do livro ALEITAMENTO: Bases Científicas.

cap. 22
 FÓRMULA INFANTIL:
ingredientes, mimetizações, signos e mercado

Luiz Eduardo R. de Carvalho e Marcia dos S. Dias


1.   Introdução


Lactose é um açúcar que não se encontra em nenhum outro lugar que não seja nos leites. Lactose não é o único carboidrato do leite materno. E caseína não é a proteína predominante no leite humano. Esses são três fundamentos básicos para pensadores e para usuários de “fórmulas infantis”. E são os três fundamentos que guiarão estas reflexões sobre mimetização, signos, rotulagem e regulação em infant formulas ou “fórmulas infantis”.

Bem antes desta contemporaneidade de nanotecnologias, clonagens e transgenias biotecnológicas, algumas poucas décadas atrás, a tecnologia de alimentos imaginou “maternizar” o leite de vaca, retirando dali a lactose e a fração protéica do soro do leite - a lactoalbumina, em vez da caseína  - e juntando-as a óleos vegetais, assim formatar os pilares das formulações para bebês, uma inovação em tudo similar a tantas outras formulações já adotadas e, em particular, na nutrição enteral e parenteral.

As “fórmulas infantis” emergiam, assim, como um alimento que mimetizaria uma secreção glandular, e o leite materno passava a ser, para muitos, algo equivocadamente assumido como um alimento dentre outros. E se ali eram aceitas denominações como leite de côco, leite de rosas, leite de onça e, mais tarde, leite de soja, parecia normal que então se encaixassem também terminologias como “leite infantil” e “leite maternizado”. Mais tarde, esta denominação seria demonizada e planetariamente retirada de circulação.

Pós para refresco mimetizam sucos de frutas. Margarina mimetiza manteiga. E, portanto, o senso comum poderia perfeitamente também conduzir à hipótese de que seria possível e legítimo mimetizar o “alimento” leite materno. E aqui é oportuno abrir parênteses: a margarina, ao mimetizar manteiga, está subordinada à uma legislação específica, que exige a adição das vitaminas A e D, originalmente presentes na imitada manteiga. Paradoxalmente, a legislação não adota o mesmo cuidado com os refrigerantes (sem betacaroteno ou anticianinas), as bebidas de soja (sem frutas e com escassa soja), os pós para refresco (sem vitamina C ou flavonóides), as “carnes vegetais” (sem ferro) etc.

Ao ingerir refrescos artificiais, em vez de sucos naturais, o consumidor é subtraído do aporte de vitaminas, minerais e outras substâncias benéficas à saúde, limitando-se a beber açúcar dissolvido em água colorida. Isso não ocorre ao se trocar a manteiga pela margarina, porque esta é compulsória e discretamente vitaminada. No entanto, a margarina não pode destacar, em sua rotulagem, os nutrientes adicionados, pois também, e como as fórmulas infantis, nada mais é do que uma imitação de um produto que contém naturalmente essas substâncias.

Se a margarina tivesse permissão para propagandear essas adições, poderia prevalecer a percepção de ser mais rica em vitaminas do que a manteiga. E temos aqui, então, um  inquietante paradoxo: as “fórmulas infantis”, quando agregam sais minerais, oligossacarídeos e quaisquer outras substâncias naturalmente presentes no leite humano, fazem enorme publicidade desse “plus”, em seus rótulos e também em seus folhetos “científicos” direcionados à classe médica.  Ora, o fato da marca A conter um “plus” em relação à marca B, não deveria poder ser confundido, de roldão, com um “plus” da marca A em relação ao leite materno.

“Fórmulas infantis”, porém, estão propagandeando e rotulando todo tipo de “health claims”[1]: DHA, ARA, TCM[2], enriquecido com ferro e zinco, nucleotídeos, LC-PUFAs[3], bifidogenices, probióticos, prebióticos, simbióticos, cálcio e fósforo de alta disponibilidade etc. Em suma, nota-se um projeto em curso, não somente para “customização” das infant formulas, mas também para instauração de uma imagem de “alimento funcional” diferenciado e superior ao leite materno. 

Uma infant formula, porque conceitualmente se apresenta como uma mimetização do leite humano, deveria, e parece óbvio, receber ingredientes idênticos ou muitíssimo similares  -  não apenas em termos de identidade e qualidade, mas também de quantidade  -  àqueles todos que estão naturalmente presentes naquilo que se propõe a mimetizar. Ou seja, a fonte de carboidrato deveria ser predominantemente lactose, e não amido, sacarose, maltodextrina ou até mesmo gomas e fibras. Igualmente, a proteína não deveria ser caseína, mas sim lactoalbumina.

No mercado, porém, o que se observa é uma realidade muito distante deste raciocínio. Como agravante, a rotulagem não salienta essas variações; ao contrário, e inclusive pela manipulação de terminologias, parece pretender a construção de uma identidade propositalmente difusa e misteriosa.

Neste capítulo, o foco estará em um sub-recorte, que é a utilização de variadas fontes e tipos de proteínas (não apenas soro) e carboidratos (não mais estritamente lactose), bem como a utilização de nomenclaturas desviantes. Objetiva-se, enfim, identificar, descrever e analisar, exploratoriamente, a partir da rotulagem,  a identidade e a composição de infant formulas ofertadas no Brasil, com foco nas fontes de carboidratos e proteínas.


 
2.   A imagética das palavras e dos números nos rótulos


Uma primeira análise dos rótulos das “fómulas infantis” impressiona o observador, pois tais rótulos estão saturadamente povoados de palavras, frases, anúncios, tabelas, quadros, imagens, símbolos e logomarca ocupando por inteiro o espaço disponível. E, nesse contexto, as INFORMAÇÕES IMPORTANTES, inclusive quando assim anunciadas, em maiúsculas e negrito, encontram-se impressas em fontes de tamanho relativamente diminuto, em espaços, locais, cores e formatos nada privilegiados ou destacados.

Já não é mais permitido inserir figuras de bebês nos rótulos das “fórmulas infantis”. Persistem, porém, outras imagens que inclusive ampliam a velha e proibida mensagem: onde era um bebê, agora são bebês-ursinhos, de lábios avantajados e brancos, simulando uma chupeta. E a cada dia está maior aquela amável figura da “mamãe-passarinha” colocando comidinha na boquinha do “filhinho-passarinho”.

Essas figurações são por demais visíveis e óbvias. E o problema é bem mais vasto e complexo. Merecem atenção, por exemplo, as tabelas de nutrientes, que nas infant formulas se diferenciam das informações nutricionais dos rótulos de todos os demais alimentos, inclusive do próprio leite de vaca.

Aquelas tabelas (Box 1) não foram imaginadas e criadas como instrumento de informação nutricional, mas como produto dos departamentos de “soluções visuais”, que assessoram clientes nos esforços de “traduzir” ao público os conceitos, valores e objetivos de uma mercadoria, de uma instituição, de um serviço ou de um evento.

Nesta “era imagética”, na sociedade de consumo, onde o ambiente e a cultura são regidos por imagens, um rótulo não é lido nas palavras que estão ali escritas. Antes do rótulo, será lida a própria embalagem. E, antes da embalagem, será lida a localização do produto no supermercado, a seção onde está ofertado, em que altura das prateleiras, as outras mercadorias vizinhas. E é lido se o produto tem status e perfil para freqüentar prateleiras de farmácias e drogarias.  E´ lido o próprio preço e, quando o preço é caro, então é bem provável que seja muito bom produto. A mercadoria não pede, em seus rótulos, uma leitura de palavras e uma alternativa alimentar, porque antes oferece uma leitura do mundo e uma opção de reposicionamento cultural e social dos indivíduos “consumidores” na sociedade.

Ler  -  e ler um rótulo  -  é mais que olhar letras, compor sílabas e entender palavras. Ler é também, e antes, entender um cenário, traduzir uma situação, decifrar e interpretar mensagens gráficas e decodificar signos. Um consumidor-cidadão e, em especial, um profissional de saúde, quando se defrontam com um rótulo de alimentos, de cosméticos, de medicamentos ou mesmo de produtos domissanitários, precisam aceitar o desafio de selecionar e interpretar as imagens desses rótulos, subentendendo que, muitas das vezes, também as palavras e os números não são palavras e números, mas imagens que expressam sentidos que não estão nas palavras e números ali desenhados, e que não podem ser ignorados como caráter ideológico subjacente, nem como ferramentas de uma idéia essencial elipsada,  mas ali sendo emitida. E este é um objetivo secundário deste Capítulo: realizar um exercício de reflexão e treinamento para seleção, leitura e interpretação das informações e imagens que nos são colocadas nos rótulos das “fórmulas infantis”.

Observemos as tabelas de composição química das infant formulas apresentadas no Box 1. Essas tabelas, ao contrário das orientações e dos alertas compulsórios estabelecidos pela legislação, ocupam vastos e nobres espaços nos rótulos. E, paradoxalmente, no mundo do cognitivo, é bem provável que os consumidores, ao olharem os rótulos de infant formula, terminem lendo como imagens, mesmo aquilo que, no mundo do jurídico, no universo do regulatório, seriam apenas textos descritivos, com palavras e números. Ou seja, uma tabela de nutrientes, sendo percebida ou não, sendo sequer olhada ou não, sendo bioquimicamente compreendida ou não, ela, em vez de ser lida, é meramente vista, e a imagem então emite, ao consumidor, uma mensagem própria e diferente do que está escrito.

Independentemente dos teores sempre adequados ou não, independentemente da composição química ser saudável para os bebês ou não, os consumidores estarão captando uma mensagem desenhada e não escrita. E tal mensagem, uma imagem que lemos como Y, embora esteja escrito X, é algo como:  “este produto contém muitos nutrientes, muitas vitaminas e muitos sais minerais”.

Essas palavras não estão escritas ali. Mas é isso que está ali desenhado com nomenclaturas e números bromatológicos e, então, é isso que, no final, embora meramente olhado, terminará sendo lido e captado pelo cérebro.

Se um rótulo de infant formula fosse uma mediação entre profissionais de saúde e consumidores, certamente as informações não estariam com aquela localização e aquele “lay out”, nem com fontes naquelas dimensões e naquelas cores. Essas deficiências ou divergências gráficas seguramente não expressam deficiências técnicas dos autores que redigem, ilustram e diagramam tais rótulos. Muito pelo contrário, o que sanitariamente entendemos como erros são, em vez disso, os “grandes acertos” das mais privilegiadas mentes publicitárias e mercadológicas.

Mostra-se, assim, imperativo desenvolvermos esforços para traduzir, explicitar e compreender essas ocorrências desviantes, pelo olhar crítico da saúde pública e no cenário delicado da puericultura. Primeiro, para melhor orientar ou alertar consumidores e profissionais. Segundo, mas não menos importante, para persuadir os responsáveis pela regulação e vigilância sanitária que as normas vigentes de rotulagem são cúmplices ou mesmo patrocinadoras dessas danosas distorções.

 Box 1
Tabela de Nutrientes: Texto ou Imagem ?



Aquilo que aqui se aponta como equívocos e distorções, certamente, são criações de grandes especialistas, formados ou formatados em academias superiores de propaganda e marketing, que depois se intrapremiam e se congraçam, comemorativamente, em festivais, por essas “brilhantes” criações, que classificam como “cases” de sucesso, fazendo, do rótulo e do design, ferramentas orientadas para arquitetar fantasias e percepções imaginárias, úteis para gerar demandas artificiais e alavancar consumo e inflar vendas; mas violando valores sociais e a ética, sem considerar que o consumidor-alvo são frágeis, vulneráveis e indefesos bebês de poucas semanas de vida. Ressaltar falácias, elaborar falsas percepções e ocultar alertas constituem um ricamente remunerado desafio para essas inteligências.





3.   Ingredientes Básicos nas Infant Formula


A listagem de ingredientes utilizados na formulação desses produtos também parece adotar artifícios que, embaralhando e sobrepondo termos técnicos e seus sinônimos, dificultam a compreensão, induzem a erros e, mais que tudo, contribuem para a consolidação da percepção de uma “caixa-preta”. Isso se soma a outras violações do espírito das normas de proteção ao aleitamento materno.

O Codex Alimentarius[4], por exemplo, estabelece que essas categorias de produtos “serão rotuladas evitando-se qualquer risco de confusão entre “infant formulas, fórmulas de seguimento e fórmulas para uso medicamentosos especiais”. Paradoxalmente, o Codex não vai além desse ponto e, assim, ele próprio, ao não detalhar com desdobramentos especificativos, se omite e abdica de intervir na prevenção e controle desses reconhecidos fatores de confusão e seus riscos.

Como está demonstrado no Capítulo 22, as normas do Codex Alimentarius e da ANVISA vêm sendo modificadas sucessiva e frequentemente, como resultado de um jogo de forças oscilantes, onde o segmento industrial tem vetores sempre mais poderosos. Para modificar o equilíbrio de forças entre os atores desse jogo, é necessário, por parte dos profissionais de saúde, mas também dos consumidores, um melhor conhecimento sobre a natureza e a nomenclatura dos ingredientes. Uma rotulagem objetiva e sincera poderia facilmente dar conta dessa tarefa informativa. Entretanto, como essa rotulagem ainda não existe, e depende da correlação daquelas forças, mostra-se imperativo decodificar e reconstruir a rotulagem a partir do olhar e dos saberes dos usuários.

E´ diante desse quadro, que o objetivo deste capítulo volta-se para descrever, questionar e, resgatando alguns conceitos básicos de bromatologia, orientar a leitura e a interpretação dos rótulos de infant formulas, atendo-se ao recorte da listagem de ingredientes, sub-recortando para focar em fontes de carboidratos e proteínas. O ato de identificar, classificar e explicar, química e bioquimicamente, os ingredientes presentes nas infant formulas,  certamente poderá se afirmar como uma alternativa pedagógica para a desconstrução desses rótulos, tornando-os mais inteligíveis e, então, melhor controláveis.

Se o leite materno fosse, hipoteticamente, considerado um alimento qualquer  - e para adultos sãos  -  deveríamos então iniciar observando que ele é composto de carboidratos (quase exclusivamente lactose), proteínas (predominantemente lactoalbumina), lipídeos, vitaminas e sais minerais (de alto valor biológico). Ou seja, não estaríamos focando nas demais substâncias presentes e indispensáveis para um bebê, que caracterizam o leite materno não como um alimento, mas como um “produto muito particular”.

CARBOHIDRATOS

E´ reconhecido que o principal açúcar do leite materno é a lactose, porém mais de outros trinta açúcares já foram identificados no leite humano, como a galactose, a frutose e os oligossacarídeos, com ação bifidogênica comprovadamente muito maior do que os do leite de vaca.  Nas infant formulas, já quando se começa observando o que há de mais básico, que são os carboidratos, o Codex abre a possibilidade de se substituir o leite materno por outra coisa, totalmente diferente do leite materno.

Nos trechos a seguir, grifa-se algumas palavras das normas internacionais, para evidenciar como, sinalizando proibições, o Codex, ao contrário, institui permissividades, quando estabelece que “Lactose e polímeros da glicose deveriam ser os carboidratos preferenciais nas fórmulas baseadas em leite de vaca e proteína hidrolisada”,  e que “ (...) apenas amidos pré-cozidos ou gelatinizados”, glúten-free por natureza, poderiam ser adicionados, mas  “apenas até 30% do carboidrato total e até 2 g/100 ml”.  Além disso, “Sacarose, exceto quando necessário, e frutose deveriam ser evitados como ingredientes, (...) inclusive devido à potencialidade de sintomas que podem causar óbito em bebês com intolerância hereditária não reconhecida à frutose”.



PROTEÍNAS

As principais proteínas presentes no leite de vaca podem ser divididas em três grupos:
1) caseína, que é a parte coagulável das proteínas; 2) proteínas solúveis não coaguláveis, representadas pela alfa-lactoglobulina e alfa-lactoalbumina; e 3) proteoses, peptonas, albumina sérica e imunoglobulinas, as quais ocorrem em baixas concentrações. Mas nem tudo que é quimicamente proteína está, no leite de vaca ou no leite humano, para ser consumido como proteína, para fins nutricionais.  Muitas vezes uma substância tem caráter protéico, estrutura protéica, mas tem finalidades biológicas não-nutricionais. E´ o caso das enzimas, que são proteínas, mas até porque insignificantes em quantidades, não são exatamente “comida”. Vale lembrar, outrossim, que diversos estudos já demonstraram existir, pelo menos, mais de 25 frações protéicas alergênicas no leite de vaca. E, no leite materno, o perfil das substâncias protéicas é bastante diferente, começando pela presença de taurina, ausente no leite de gado.

O que mais diferencia o leite de vaca do leite humano, e por isso mesmo mais transtornos pode causar aos bebês, é exatamente a composição de proteínas e o desequilíbrio entre os minerais. O leite de vaca ainda possui três vezes mais proteína que o leite humano, sobrecarregando o rim, quando consumido em alta quantidade e, ao contrário do que se imagina, aumentando a excreção urinária de cálcio.

As proteínas do leite humano são estruturais e qualitativamente diferentes das do leite de vaca. No leite humano, 80% do conteúdo protéico é de lactoalbumina. No leite de vaca, esta mesma proporção é de caseína. A relação proteína do soro/caseína do leite humano é de 80/20, a do leite bovino é 20/80.

 A baixa concentração de caseína no leite humano resulta em uma formação de coalho gástrico mais leve, com flóculos de mais fácil digestão e com tempo reduzido de esvaziamento gástrico. Além disso, o leite bovino contém a beta-lactoglobulina, uma proteína que não existe no leite materno e é comprovadamente a mais alergênica do leite de vaca para o ser humano, principalmente porque  não temos as enzimas indispensáveis para digeri-la.

CÁLCIO

Outro fator de desequilíbrio no leite bovino é a quantidade de cálcio, que é 3 vezes maior que no leite materno, porém com desequilíbrio entre os minerais necessários para uma adequada utilização do cálcio, prejudicando sua biodisponibilidade. Isso não acontece no leite humano, cuja quantidade e proporção de cálcio e dos demais minerais como magnésio, boro e manganês  sinergizam a absorção, gerando uma utilização adequada e evitando portanto microcalcificações.





4.   Listagem de Ingredientes nas Infant Formula


Se uma infant formula deve assemelhar-se, bromatologicamente, ao leite materno, então deveria conter, já de início, os mesmos carboidratos e as mesmas proteínas. Entretanto, uma primeira observação panorâmica e superficial dos rótulos das infant formula (Box 2) revelará que no mercado as “fórmulas” não não assim. A origem e a tipologia dos ingredientes das diversas infant formulas variam largamente entre as diferentes marcas e mesmo dentro de uma mesma marca, ora contendo leite, ora contendo maltodextrina ou mesmo sais inorgânicos de cálcio (portanto, de origem não-láctea).
  
Box 2
Listagem de Ingredientes de algumas Infant Formulas









A Tabela I, a seguir, apresenta algumas das principais Infant Formulas e suas respectivas fontes de carboidratos (células em fundo cinza claro) e proteínas (fundo cinza mais escuro).  Nota-se uma ausência de padronização nas denominações, o que dificulta a compreensão dos consumidores e cria tendência de indução a erros na opção de compra e consumo.











O Codex Alimentarius estabelece que, além dos requisitos de composição básica, é também permitida -  não obrigatória, mas meramente permitida  -  a adição de ingredientes facultativos, substâncias que normalmente (grifo nosso) estão presentes no leite humano, para garantir que a infant formula seja adequada como única fonte de nutrição do lactente, ou para proporcionar outros benefícios análogos aos resultados de populações de lactentes com aleitamento materno exclusivo. Tais substâncias são:  taurina, nucleotídeos e ácido docosahexaenoico  (22:6 n-3). E ainda culturas produtoras de L(+) ácido lático. A Tabela II apresenta os ingredientes facultativos presentes em algumas Infant Formulas encontradas no mercado brasileiro em 2009.






5.   Carboidratos  em  Infant Formulas

 Monossacarídeos e dissacarídeos se apresentam, na natureza, em baixas quantidades. Em vez de açúcares livres, o que mais temos são polissacarídeos. O  amido, assim como a celulose, é um polissacarídeo formado  por cadeias que podem chegam a milhares de unidades de glicose (C6H12O6). Quando a cadeia é linear, o amido é denominado amilose; quando é ramificada, amilopectina. E quando a cadeia tem entre dois e dez monossacarídeos é denominada oligossacarídeo. 

O amido de milho, como o de trigo e de outros grãos, raízes e tubérculos, é sempre uma longa cadeia de moléculas de glicose. Forma assim uma macromolécula, com cerca de 1,4 mil unidades de α-glicose, conectados por ligações glicosídicas  α-1,4. As ramificações  ocorrem mediante  ligações α-1,6. Quando oriundo de raízes e tubérculos, o amido recebe o nome de fécula.

Amilose e celulose são, igualmente, longas cadeias lineares de glicose; o que os diferencia são as ligações entre as unidades de glicose nessas cadeias. No caso da celulose, são as ligações são do tipo b-1,4. E, para romper estas ligações, o trato digestivo humano não dispõe das enzimas hidrolíticas específicas. Então, e ao contrário da amilose, a celulose não pode ser absorvida.

Os leites são a única fonte conhecida desse dissacarídeo, a lactose, que é composta de dois monossacarídeos, a glicose e a galactose. O leite de vaca contém cerca de  4,9% do açúcar “lactose”, o que não chega a adoçar o leite, já que a lactose é um açúcar que não tem o poder adoçante da sacarose. Maltose (glicose-glicose) e sacarose (glicose-frutose) são outros dissacarídeos. A glicose é também conhecida como dextrose e até pelo anglicismo glucose. A frutose é também denominada de levulose, o que parece química e semanticamente melhor apropriado.

 Dissacarídeos, assim como o polissacarídeo amido, não são capazes de atravessar a parede  intestinal e, portanto, para serem aproveitados como fonte de energia é indispensável que, primeiro, sejam hidrolisados a monossacarídeos. Os oligo e polissacarídeos não hidrolisados seguem do intestino delgado até o intestino grosso, interferindo no funcionamento dos intestinos.

O leite normalmente apresenta pouca variabilidade no teor de lactose, isto ocorre em função desse dissacarídeo ser um dos principais responsáveis pela osmolaridade, e da necessidade da pressão osmótica do leite estar de acordo com a pressão sanguínea (SWAISGOOD, 1996).

O  Box 3 apresenta uma relação das fontes de carboidratos adotadas nas infant formulas existentes no mercado brasileiro:  sacarose, açúcar, maltodextrina, amido de milho pré-gelatinizado, xarope de milho, sólidos do xarope de milho, xarope de glicose, açúcar, lactose (de leite de vaca, inclusive quando o ingrediente declarado é o leite de vaca desnatado). Fica explícito não apenas a larga variabilidade das fontes e tipologias de carboidratos usados para “mimetizar”, em geral equivocadamente, o leite materno, mas explícito também que não há nenhuma padronização nas terminologias. Uma marca rotula sacarose e a outra rotula açúcar; outras rotulam meramente amido, enquanto outras citam a fonte e modificações eventuais nos amidos.  Essas variações terminológicas, seja pela adoção de sinonímias, seja por denominações descritivas das características das substâncias, não parece constituir um método razoável de bem informar os consumidores, gerando dúvidas desnecessárias e confusão na inteligibilidade dos ingredientes.

  

Box 3
Ingredientes que aportam carboidratos nas Infant Fórmulas  
(segundo a rotulagem)
   
Lactose
Sacarose
Açúcar
Xarope de milho
Sólidos de xarope de milho
Polímeros de glicose
Maltodextrina
Amido
Amido de milho
Amido modificado
Amido de arroz pré-gelatinizado
Amido de milho pré-gelatinizado

 ]

O problema da nomenclatura e das definições é, porém, muito mais profundo. Vale registrar que a legislação vigente  -  produzida pela CNNPA (Comissão Nacional de Normas e Padrões para Alimentos), em sua Resolução 12/1978, aprovando para todo o território brasileiro as normas técnicas então criadas e vigentes no Estado de São Paulo  -  definiu que amido é :
 (...)  o produto amiláceo extraído das partes aéreas comestíveis dos vegetais (sementes), etc.). Fécula é o produto amiláceo extraído das partes subterrâneas comestíveis dos vegetais (tubérculos, raízes e rizomas). E isso então inclui:   amido de arroz; amido de milho; araruta (extraída de Maranta); fécula de batata; polvilho ou fécula de mandioca; sagu (extraído de palmeiras); tapioca (obtido da farinha de trigo, privado de quase todo o seu amido); e Farinha integral (obtido sob a forma granulada a partir de fécula de mandioca submetida a processo tecnológico adequado). 
Não é preciso ter sido um excelente aluno de química, ou ser um expert em nutrição ou gastronomia, para perceber que tapioca não é isso, nem farinha integral tampouco é aquilo que a legislação diz que é. De toda forma, essa é a legislação; e é assim  que legisla e opera a ANVISA.  Não seria, portanto, precipitado pressupor que, em questões muito mais complexas, como definição e caracterização de “infant formula”, as normas sejam ainda mais contraditórias e equivocadas.
Na Wikipédia, curiosamente, não é muito diferente. Dextrose e glicose, já sabemos, são apenas dois nomes diferentes para uma mesma substância. Mas, como pode ser observado, a definição lá oferecida para maltodextrina (em 9 de dezembro de 2010), trata dextrose e glicose como se fossem duas substâncias diferentes.
“Maltodextrina (...) pode ser definida como um polímero de dextrose e glicose.”

Maltodextrina é um carboidrato complexo, proveniente da industrialização, onde a hidrólise parcial provoca uma conversão do amido do milho. Sua absorção pelo organismo é gradativa e lenta, pois contém polímeros de dextrose (glicose). Também interessante é que a maltodextrina não apenas aparece na composição de muitas dessas “fórmulas infantis”, mas inclusive é comercializada, para bebês, fazendo uso de uma marca de fantasia: Nidex. As informações constantes no rótulo não esclarecem adequadamente o que é Nidex e, menos ainda, o que é maltodextrina, apenas tratando de, ao fingir informar, promover o consumo do Nidex em substituição à sacarose que, ressalte-se, estava como ingrediente na fórmula do Nestogeno Plus, do mesmo fabricante.

 Box 4
Rotulagem e “anúncios” da maltodextrina NIDEX  (2009)




6.   Proteínas  em  Infant Formulas

Em proteínas, a confusão é menor, mas ainda assim significativa e de risco.  Uma cadeia de aminoácidos denomina-se "peptídeo", podendo a cadeia possuir dois aminoácidos (dipeptídeos), três aminoácidos (tripeptídeos), quatro aminoácidos (tetrapeptídeos) ou muitos aminoácidos (polipeptídeos). O termo proteína é dado quando, na composição do polipeptídeo, entram centenas ou milhares de aminoácidos.

A principal proteína presente no leite fresco, de vaca, é a caseína, que é uma mistura de várias fosfoproteínas muito semelhantes, atingindo cerca de 80% das proteínas do leite. E´ a caseína que, junto com a gordura, propiciam a cor branca ao leite. A caseína coagula por ação da renina, uma enzima presente no suco gástrico, formando um coágulo por aglomeração das micelas de caseína, conforme se observa na fabricação de queijos.  E coagula por ação de ácidos, conforme se observa, por exemplo, na produção de iogurtes.

Alguns autores classificam as proteínas do leite de vaca em dois tipos: a caseína e as proteínas do soro.  Devido às características particulares do complexo micelar de caseína, as proteínas do leite separaram-se facilmente nessas duas frações “caseína e proteína do soro”. Quando a caseína coagula e precipita  - como ocorre durante a fabricação do queijo  -  restam ainda duas outras proteínas solúveis no soro, como a lactoalbumina e a lactoglobulina, que podem ser retiradas para fazer ricota, ou para servir de ingredientes em derivados lácteos, incluindo algumas das infant formulas.

Da farinha desengordurada de soja é tecnologicamente possível extrair a parte proteica. E essa parte é a chamada Proteína Isolada de Soja, uma farinha concentrada em proteínas. Esse isolado protéico pode apresentar composição centesimal variada, dependendo do processamento e das condições de cultivo, sendo usual produtos com até 90% de proteínas.

O Box 5 apresenta uma listagem dos ingredientes utilizados, nas fórmulas infantis industrializadas, como fontes de proteínas. Observa-se fenômeno em tudo semelhante ao apontado, antes, no Box 3, para carboidratos.  Ou seja, uma lista enorme e variada de ingredientes e denominações, grande parte deles muitíssimo diferentes das proteínas encontradas no leite materno.  E o Box 6 apresenta a lista de ingredientes de dois produtos sequenciais, ilustrando como a fonte proteica é trocada daFórmula Infantil para aFórmula Infantil de Seguimento, dentro da mesma marca.

O teor proteico das infant formulas é calculado multiplicando-se por 6,38 a quantidade de  nitrogênio detectado por análise laboratorial. Esse coeficiente pode ser diferente, ou não, para as demais fontes proteicas permitidas nesses produtos. Para proteínas vegetais o coeficiente muda para 6,25; mas para hidrolisados da proteína do leite de vaca se mantém em 6,38.  Para um mesmo valor energético (kcal), a fórmula deve conter, no mínimo, uma igual quantidade disponível de cada aminoácido essencial ou semi-essencial, em relação à
proteína de referência (no caso, as do leite materno).

Aminoácidos isolados podem ser adicionados nas infant formulas apenas para incrementar o valor nutricional; já para incrementar a qualidade proteica, apenas em quantidades necessárias para tal propósito, sendo que apenas formas L dos aminoácidos são permitidas pelas normas de identidade e qualidade.

  
Box 5
Ingredientes que aportam proteínas nas Infant Fórmulas 
(segundo a rotulagem)


Soro de leite
Concentrado proteico de soro
Soro de leite desmineralizado
Proteína hidrolisada do soro de leite
Leite desnatado
Leite integral
Leite de vaca desnatado
Leite de vaca integral
Proteína do leite de vaca
Caseína
Caseína hidrolisada
Caseinato de potássio
Soro de leite desmineralizado
Proteínas do soro de leite
Proteína isolada de soja
Isolado protéico de soja






Box 6

Variações da fonte protéica
entre Fórmula Infantil e Fórmula Infantil de Seguimento
  





7.   Observações Finais


Os carboidratos no leite materno não são apenas o convencional dissacarídeo lactose; esta é o carboidrato em maior quantidade, com cerca de 80%, mas os demais 20% de carboidratos não são um “resto” de carboidratos.  E´ que aqui entram em cena os oligossacarídeos, carboidratos com entre três e dez monossacarídeos em sua estrutura, numa combinação que inclui cinco componentes: glicose, galactose, ácido siálico, fucose e N-acetilglucosamida. 

Denominam-se “fator bifidogênico” aqueles que contem N-acetilglucosamida na estrutura e estimulam o desenvolvimento de bactérias do gênero Bifidobacterium, que predominam nas fezes de lactentes em aleitamento materno exclusivo. Esses oligossacarídeos somam pouco mais de 6 gramas diárias para um lactente amamentado, que não são absorvidos no intestino delgado.

As “fórmulas infantis”, por motivos variados, fazem uso de outros carboidratos, associando-os ou não à lactose. Pode ser sacarose, para tornar o produto mais doce e aceitável pelo bebê; podem ser gomas ou amidos, com fins de espessamento, visando enfrentar o fenômeno da regurgitação; e dentre outras finalidades, pode também ser um oligossacarídeo com propriedades bifidogênicas, para melhor mimetizar o leite materno e justificar “health claims” na rotulagem.

Esses produtos não podem fazer publicidade direta ao público consumidor. Mas, havemos de convir que, em boa parte, a decisão de compra não depende das mães , pois as “fórmulas infantis”, sendo prescritas por médicos, têm, nesses médicos, o poder do exercício opsônico da compra. Então, é o pediatra, e não a mãe, quem decide se deve ser adquirido ou não, decidindo também o tipo e a marca do que será comprado.

Nesse contexto, livretos e folhetos “científicos”, distribuídos pelos fabricantes aos profissionais de saúde, demandam atenção. Nota-se uma crescente agressividade retórica nesses “informes médicos”: os catálogos já não se limitam a falar das vantagens do seu próprio produto, mas começam a apresentar enfáticas críticas aos produtos concorrentes. Um fabricante defende que usa maltodextrina, enquanto acusa o concorrente de usar sacarose. Ou defende que usa amido como espessante, enquanto acusa o concorrente de espessar com fibras dietéticas, que prejudicariam a absorção de sais minerais pelo bebê. Ou defende que não usa oleína de palma, sugerindo que outras marcas usam, sem contudo adiantar explicações  -  ao menos não por escrito  -  acerca dos riscos ou danos que essa oleína poderá representar para um bebê.

Estudo realizado com o objetivo de comparar a eficácia de uma fórmula infantil pré-espessada (Nan AR) com fórmula convencional, de espessamento caseiro, com amido de milho  - na redução de episódios de regurgitações e vômitos de lactentes com refluxo gastroesofágico, estudando 100 crianças menores de 12 meses de idade, que não faziam uso de leite materno exclusivo, onde  48 foram sorteadas para receber fórmula convencional, e 52 para receber fórmula infantil pré-espessada (Nan AR)  -  concluiu, após 3 meses de observações, que os resultados clínicos não apresentaram diferença estatisticamente significativa na melhora ou cura dos sintomas entre os dois grupos, tendo sido ambos os tratamentos eficazes (Penna, 2003). E um outro estudo, voltado para avaliar os efeitos do uso de fibras dietéticas nesse espessamento de fórmulas infantis, concluiu que, dependendo do tipo de fibra utilizada, eram causados efeitos negativos, prejudicando a disponibilidade de cálcio, ferro e zinco (Bosscher, 2003).

O Box 7 apresenta uma dessas formulações, que anuncia efeito bifidogênico, ao mesmo tempo em que oculta a substituição da fonte de carboidrato.  Ora, se de verdade são os tão anunciados prebióticos que interferem na constipação, caberia perguntar por que então o fabricante cuidou de, ao mesmo tempo, modificar a formulação, colocando maltodextrina na versão “confort” em lugar da lactose que permanece na versão original.

  Box 7
Rótulo e Propaganda de Fórmula Infantil com probiótico
(ou será a maltodextrina o agente ?)





Se alguma lição é possível extrair de todas essas observações, a principal seria: ainda que as fórmulas infantis conseguissem encontrar e fornecer proteínas e carboidratos iguais ao do leite materno - e isso, como vimos, não é feito   -  ainda assim ficariam faltando aquelas outras substâncias que, embora química e estruturalmente se classifiquem como proteínas e carboidratos, não têm essa função de, respectivamente, aportar aminoácidos para construção de tecidos ou de fornecer energia.

Outras são as funções metabólicas e fisiológicas desses carboidratos e proteínas e, à medida que tais substâncias e suas funções vêm sendo percebidas, identificadas e compreendidas, algumas das “fórmulas infantis” procuram se ajustar, incluindo-as como ingredientes. Essa circunstância pode ser observada por diversos ângulos, mas ficaremos, aqui, restritos ao ângulo da rotulagem.

Não parece razoável fazer da adição de algumas dessas substâncias motivos legítimos para destacar “health claims” nos rótulos e nas propagandas. Pelo contrário, se tais adições - como é, por exemplo, o caso dos probióticos e dos prebióticos  - forem realmente indispensáveis e eficazes, então elas deveriam ser requisitos compulsórios a todas as “fórmulas infantis”, de todos os fabricantes, e seria proibido destacar isso no rótulo, interditando as intenções de construir uma imagem de “alimento funcional”, vagamente talvez insinuado como superior ao leite materno. 

Nesse quadro, a conclusão é que as “fórmulas infantis” tendem a evoluir na contracorrente: em vez de convergirem para serem todas o mais similar possível ao leite materno e, em decorrência, serem cada vez mais similares entre si, elas, inversamente, se vergam às forças da concorrencialidade e procuram, por ações de ordem mercadológica, se diferenciar mais e mais umas das outras. Diferenciam-se adicionando substâncias que inspiram alegações nutricionais e de saúde, como DHA, ARA, nucleotídeos, prebióticos, probióticos etc. Mas se diferenciam também porque o carboidrato muitas vezes não é a lactose, nem a proteína é lactoalbumina.

Leite materno não é um alimento e não está no mercado. Leite materno não é leite, que vem dentro de uma caixinha contendo estabilizantes que, nos refrigerantes zero, são denominados “reguladores de acidez”, enquanto hidróxido de sódio é proibido para regular acidez de leite refrigerado.  Leite materno não é algo que encontramos na natureza e elegemos para entrar no rol dos “alimentos”. Leite materno não é apenas mais um tipo de leite. Logo, não parece razoável que seus pretensos “genéricos” sejam regulados e rotulados com os mesmos valores e métodos que se regulam e rotulam refrescos, snacks e jujubas. E que expandam diferenciações entre as marcas, quando deveriam estar todos, ao inverso, convergindo para um mesmo ponto, que é a mimetização bromatológica do leite materno, que implicaria utilizar lactose e lactoalbumina, em vez de maltodextrina, sacarose, amidos e gomas espessantes.

As fórmulas infantis agora visam mimetizar não apenas ou exatamente o leite humano. Elas tentam mimetizar o "produto ideal", engenheirado para alavancar vendas e liderar a concorrencialidade, em consonância com o paradigma que evolui para hegemonizar o perfil do mercado nutricional: o alimento funcional, a customização, o fast food, a alta gastronomia. Nada diferente, portanto, do que transcorre com os sucos de frutas que não são sucos, nem são de frutas. Nada diferente em relação aos iogurtes, os queijinhos petit-suisse e os leites fermentados com lactobacilos vivos, que não são iogurte, nem queijo, e, na maior parte das vezes, nem são de leite e, menos ainda, de leite fresco, mas de soro ou leite em pó reconstituído com água.

Esse parece ser, na atualidade, o novo ponto central da identidade e da rotulagem das “fórmulas infantis”, o que nos remete aos parágrafos iniciais deste Capítulo E leite materno não é uma bebida que contenha gomas espessantes, maltodextrina ou adoçantes. Ou seja, essas formulações são alimentos voltados para substituir uma coisa que não é um alimento. E são mercadorias voltadas para substituir uma coisa que não é mercadoria. O leite materno não é uma mercadoria, não está no comércio, e fica complicado substituí-lo por um artefato de uma natureza que ele não é.

Não há dúvida que as “fórmulas infantis” conformam um importante constructo da inteligência humana e uma preciosa contribuição da bromatologia e da tecnologia alimentar para a nutrição e a saúde. Mas a competitividade entre os fabricantes está ajudando a revelar um novo, interessante, mas inquietante e ainda pouco percebido fenômeno, que introduz novas necessidades em vigilância sanitária. Essa tendência, das “fórmulas infantis”, não parece ter sido prévia e suficientemente considerada pelo Codex Alimentarius ou pela ANVISA, e a regulação vigente, embora muito recente, já  não dá conta das novas situações e seus desdobramentos na rotulagem, na propaganda, no consumo e na saúde pública.





8.   Bibliografia

BOBBIO, F. O.; BOBBIO, P. A. Introdução a Química de Alimentos. 3 Ed. São Paulo: Varela, 2003. 238p.

BOSSCHER,  D.; VAN CAILLIE-BERTRAND, M.; VAN CAUWENBERGH, R.; DEELSTRA, H. Availabilities of Calcium, Iron, and Zinc From Dairy Infant Formulas Is Affected by Soluble Dietary Fibers and Modified Starch Fractions. Nutrition, v.19, p. 641–645, 2003. 

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CODEX ALIMENTARIUS COMMISSION. Joint FAO/WHO Food Standards Program. Draft Revised Standard for Processed Cereal-Based Foods for Infants and Young Children (At Step 6 of the Procedure). In: ________. ALINORM 05/28/26. Report of the 26th Session of the Codex Committee on Nutrition and Foods or Special Dietary Uses, Bonn, 1-5 nov 2004.
Appendix V, p. 66-77.
 
GUYTON, A.C.; HALL, J.E. Digestion and Absorption in the Gastrointestinal Tract. In: ________. Textbook of Medical Physiology. 11Ed. Elsevier: Pensilvania, 2006. Cap. 65, p. 808-818.
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PENNA, F.J; NORTON, R.C.; CARVALHO, A.S.T; POMPEU, B.C.T; PENNA, G.C; FERREIRA, M.F; DUQUE, C.G; COUTO, J.; MAIA, J.X.; FLORES, P.; SOARES, J.C.
Comparação entre uma fórmula infantil pré-espessada e fórmula de espessamento caseiro no tratamento do refluxo gastroesofágico. Jornal de Pediatria, v. 79, n. 1 p. 49-54, 2003.

SWAISGOOD, H.E.  Caracteristicas de los fluidos nutritivos de origem animal: leche. In: FENNEMA, O.R. Química de los Alimentos. Zaragoza: Acríbia, 1993. Cap. 13, p. 889-930.



[1] N.E.: Indicações de saúde ou médicas
[2] N.E.: DHA = ácido docosa-hexaenoico; ARA = ácido araquidônico;  TCM = triglicerídeos de cadeia média
[3] LC - PUFAs = ácidos graxos poliinsaturados de cadeia longa
[4] O Codex Alimentarius (Código Alimentar em Português) é um programa de normas alimentares, criado em 1962 pela FAO e pela OMS (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação e Organização Mundial de Saúde).





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